O brasileiro Jorvan Vieira é o novo treinador da seleção de futebol de um dos países mais violentos do mundo. No Iraque, que vive uma sangrenta guerra civil com milhares de mortos a cada ano, nem o futebol escapa ileso: autoridades da federação foram mortas e árbitros e jogadores foram seqüestrados nos últimos quatro anos, desde a queda do ex-ditador Saddam Hussein.
Você acha que Vieira é excessivamente corajoso ou maluco? Sua família e alguns amigos dizem que sim. Mas ele tem uma resposta pronta para quem duvida de sua sanidade mental.
“Ficam achando que eu sou maluco ou que estou precisando de dinheiro para ter aceitado treinar a seleção iraquiana. Mas nós não estamos entrincheirados, com granada na mão. Há segurança no norte do país, onde vamos ficar sediados”, explica o brasileiro.
Só não peça para Vieira ir a Bagdá, onde acontecem os principais confrontos entre os grupos sunitas e xiitas e as tropas norte-americanas. “Nem pensar!”, exclamou ao telefone, em uma entrevista exclusiva ao G1.
G1 – Como sua família no Brasil reagiu ao convite de ir treinar o Iraque?
Jorvan Vieira – Todo mundo veio atrás de mim, preocupado. Tenho família na Espanha, em Portugal, em Marrocos e no Rio: todos me acharam maluco de aceitar o convite. Mas as pessoas não têm idéia da realidade no país, e acham que tudo é o que aparece nos noticiários, os bombardeios e mortes diárias. Tive que preparar minha mãe, que já tem uma certa idade, para a notícia. Se não preparasse, ela podia se desesperar. Mas aí eu explico que não estou indo para a zona de conflito, que boa parte do trabalho vai ser realizado aqui na Jordânia e na Tailândia. Daí as pessoas ficam mais tranqüilas. Isso aqui é o paraíso, não tem nada de tensão, de clima de guerra. A Jordânia é um país altamente seguro. Não tem sequer proteção policial no hotel.
G1 – E ir a Bagdá faz parte dos seus planos?
Vieira – Nem pensar. Os próprios dirigentes da federação iraquiana disseram que eu não deveria ir. O único trabalho no Iraque vai acontecer em Arbil, cidade que fica no norte do Iraque. Lá, os dirigentes me deram todas as garantias. Antes mesmo de aceitar o convite eu falei com amigos que trabalham na cidade, que disseram que os curdos controlavam a situação e que não tinha riscos. Bagdá é uma loucura atualmente, não iria para lá.
G1 – Como está a preparação da equipe iraquiana atualmente?
Vieira – Estamos sediados na Jordânia porque antes da Copa da Ásia, que vai ser disputada a partir de 7 de julho na Tailândia, vamos disputar a partir do dia 16 a Copa do Oeste da Ásia, da qual vão participar o Iraque, o Irã, a Palestina, a Jordânia, a Síria e o Líbano. Quase 60% da equipe já está aqui em Amã, treinando, e alguns outros ainda estão participando de campeonatos pelo mundo, já que um bom número de jogadores, os mais experientes, jogam fora do Iraque. Esses já participaram dos Jogos Olímpicos e da Copa da Ásia, são profissionais mais rodados, que atuam na Arábia Saudita, nos Emirados Árabes, no Líbano e em Chipre. Ainda estou aguardando eles.
G1 – Todos os jogadores estão fora do Iraque?
Vieira – Não. Há jogadores que continuam no Iraque também. O campeonato nacional continua acontecendo normalmente, sem problemas, mas concentrado no norte do país. Essas situações que vemos constantemente em Bagdá nem chegam lá. Na região norte não há bombas, não há violência desenfreada, e há segurança total. Já estive em Arbil, não há perigo nenhum. É para lá que nós vamos depois de nos reunirmos aqui em Amã. A idéia que as pessoas têm sobre eu ter aceitado este convite é completamente equivocada. Ficam achando que eu sou maluco, que estou precisando de dinheiro, que nós estamos entrincheirados, com granada na mão, e não é nem um pouco assim. Estive em Arbil e assisti a um jogo. Cheguei lá de avião, tranqüilamente, e nem sequer vimos soldados dos Estados Unidos.
G1 – Como fica a cabeça dos jogadores iraquianos que assistem à violência em seu país?
Vieira – Isso é muito complicado. Os jogadores são originários de Bagdá e todos os membros da minha delegação já perderam membros da família nessa violência caótica que acontece atualmente. Trabalhamos isso com eles para que consigam ter condições psicológicas para jogar. É preciso conversar muito. Mas eles não estrapolam esta tensão no campo. Não há manifestação de raiva, de violência e falta de equilíbrio emocional. Não há faltas violentas e quando há entradas mais duras os jogadores pedem desculpas, mantêm um espírito pacífico. Tentamos nos colocar na pele dessas pessoas. Elas estão vendo seu país em guerra, familiares exilados, centenas de pessoas morrendo diariamente, sempre nas vizinhanças que conhecem, vendo seus familiares em risco. Tentamos dar apoio moral, conversar, fazê-los relaxar, descontrair e até mesmo sorrir. É importante que eles tenham sorriso nos lábios.
G1 – Como consegue se comunicar?
Vieira – Falo árabe fluentemente, tanto o clássico quanto o que se fala em Marrocos, onde estou sediado. Já fui treinador assistente da seleção desse país, e fui à Copa de 86 com a equipe nacional.
G1 – Como foi o convite e o que o fez aceitar o convite?
Vieira – São dois meses porque é um projeto de jogar apenas a Copa da Ásia, depois devo voltar a treinar clubes. Foi uma decisão pessoal, já que a Copa da Ásia é a única competição que falta no meu currículo. Já estive em Copa do Mundo, Jogos Olímpicos e Copa da África. Além disso, achei uma proposta muito interessante. A equipe do Iraque é muito boa, os atletas têm muita qualidade técnica e tenho a convicção que podemos fazer uma boa campanha nesta Copa.
G1 – É possível ser campeão?
Vieira – É difícil dizer isto. Meu objetivo é deixar a seleção do Iraque pelo menos entre os 4 primeiros colocados. Se conseguir classificar a equipe à semi-final, já estarei satisfeito, mas é óbvio que vamos lutar pelo título.
G1 – Como os iraquianos lidam com a idéia de ter um técnico brasileiro?
Vieira – Eles são apaixonados pelo Brasil e pelo futebol brasileiro. Acho o comportamento deles muito parecido com o dos brasileiros. São muito brincalhões, risonhos, estão sempre na molecagem. Por incrível que pareça são pessoas muito dóceis, fáceis de lidar. Alguns jogadores já foram ao Brasil, conhecem o Rio, lembram dos lugares que conheceram. Claro que, além disso, há os jogadores brasileiros na Europa, que são ótimos embaixadores do nosso país. Ontem mesmo, estávamos conversando e eles me questionaram sobre a violência no Iraque, o que eu achava. Eu prefiro não me manifestar, pois não me diz respeito e eu prefiro não me meter, mas comentei com eles que o Rio de Janeiro também vive uma situação altamente insegura. No Rio há as brigas, as gangues, os traficantes, e dezenas morrem todos os dias. Esse tipo de coisa pode acontecer em qualquer lugar do mundo, em proporções variadas. Mas o Rio de Janeiro não está muito longe de Bagdá.
G1 – Eles costumam se manifestar a respeito de questões políticas do Iraque?
Vieira – Não. Ninguém se manifesta, e nós também tentamos respeitar e não fazer perguntas. Não nos diz respeito. Somos homens de futebol e não estamos aqui para fazer política.
G1 – Na época de Saddam Hussein havia notícias de jogadores ameaçados e até torturados, caso perdessem jogos. Há alguma seqüela disso, algum clima tenso neste sentido?
Vieira – Tenho o conhecimento dessas denúncias, mas hoje não há nenhuma tensão deste tipo. Para saber, teria que fazer perguntas, e na minha linha de trabalho não fazemos perguntas, até para a nossa segurança. Não mostramos interesse em coisas que não dizem respeito ao nosso trabalho. Damos atenção aos jogadores, quando somos procurados, mas não devemos nos meter.
G1 – Como fica a relação da seleção com a torcida, já que o time não vai às principais cidades, como a própria capital, Bagdá?
Vieira – Em função da situação caótica do Iraque, há muitos iraquianos expatriados. Só aqui na Jordânia, há mais de 1,2 milhão de iraquianos exilados. Quando formos jogar na Copa do Oeste, dia 18, com certeza não vai haver espaço no estádio, de tantos torcedores iraquianos. Recebo e-mails de iraquianos na Austrália, na Bélgica, em todo o mundo, torcendo pela seleção de seu país.
G1 – Você trabalha o futebol no Oriente Médio há três décadas. Há diferenças entre treinar o Iraque e os outros países da região?
Vieira – Cada país tem uma linha de administração de times diferente, mas a mentalidade dos jogadores é basicamente a mesma.
G1 – Como aconteceu sua ida para o Oriente Médio?
Vieira – Não tenho descendência muçulmana. Eu era preparador físico da Portuguesa do Rio de Janeiro quando fui convidado para ir trabalhar no Catar, já que eu falava inglês, há 30 anos. Lá, trabalhei também como professor de educação física e acabei ficando no futebol, mudando de países, aprendendo a língua e os costumes, o que foi um grande aprendizado pessoal para mim.